segunda-feira, 27 de março de 2017

Penso, Logo, Existo

René Descartes foi uma dessas pessoas que mudaram o rumo da humanidade, é difícil dizer qual foi sua maior contribuição, mas uma das contribuições mais importantes não foi uma obra sua, mas o resgate de uma obra antiga, a escola filosófica do ceticismo, criada por um filósofo da Grécia Antiga, Pirro de Élis, contemporâneo de Aristóteles. O ceticismo é a base do método científico, Descartes é considerado o pai do ceticismo moderno, no entanto eu entendo que não existe ceticismo moderno, o que existe é um melhor entendimento e aplicação do ceticismo, por parte do método científico, porém isso seria tema para outro ensaio.
 
Por outro lado, o entendimento do ceticismo, por parte da população em geral, é equivocado e esse equívoco está diretamente ligado ao título do ensaio, a frase “penso, logo, existo”. O termo cético significa “aquele que examina” e ceticismo, por consequência, é a prática de examinar tudo, por isso o ceticismo é a base do método científico. Infelizmente, o entendimento equivocado do termo cético faz o público utilizar esta palavra com o significado de “aquele que não acredita”. Para entender como ocorreu esse equívoco, é necessário conhecer a história por trás do surgimento da famosa frase.

Descartes decidiu examinar se era possível, e como seria, “não acreditar em nada”. Foi dessa forma que as pessoas passaram a entender que a palavra cético significa não acreditar em nada, mas Descartes não estava examinando “como ser cético”, ele estava sendo cético por examinar como era não acreditar em nada, ou seja, estava sendo cético justamente sobre “não acreditar em nada”. Em determinado ponto do experimento, Descartes percebeu que para não acreditar em nada, ele não poderia acreditar nem mesmo na própria existência.

Não sei quantas etapas o experimento teve, até chegar no ponto derradeiro, mas com certeza, todas elas poderias ter sido dispensadas, pois se ele não acreditasse na própria existência, não poderia acreditar em nenhuma outra coisa. Como Descartes não conseguiu deixar de acreditar que ele existia, ele precisou apresentar um argumento convincente para mostrar que existia. Esse argumento foi a famosa frase “penso, logo, existo”, ou seja, ele encontrou uma saída pela tangente. Sem dúvida, Descartes atingiu o objetivo de apresentar um argumento convincente, inclusive o tal argumento se tornou uma das frases mais famosas da história, infelizmente, no meu entendimento, também foi medíocre e catastrófico.

Medíocre porque o pensamento é uma consequência da existência humana, mas não é necessário pensar para existir, pedras não pensam, no entanto existem. Não vou sugerir aqui, formas de demonstração de que pedras existem, pois não resistiria a tentação de ser, digamos assim, indelicado. Catastrófico porque remete a uma existência que está além do “ser natural” e sugere a existência de um “ser espiritual” que comanda o “ser natural”. A questão do “ser natural” e “ser sobrenatural” foi abordado no ensaio “A Invenção do Ser”.

Para entender a existência do ser humano, como ser natural, é eficiente tomar como referência uma pessoa em coma. Segundo os padrões do conhecimento atual e com os recursos da tecnologia atual, um indivíduo em coma não pensa, portanto, dentro do raciocínio do Descartes, caso ele ficassem em coma por um dia, ele teria deixado de existir por um dia. Agora vem a questão, como o ser que pensa volta a existir quando um indivíduo sai do estado de coma?

O fato é que esse experimento do Descartes foi uma catástrofe desde o princípio, pois ele não separou conhecimento de crença e o resultado foi esse que vemos hoje, as pessoas entendendo que ser cético é não acreditar em nada, em vez de entender que ser cético é examinar tudo, porém o mais grave, é que as pessoas passaram a entender que conhecimento e crença são a mesma coisa, e acabaram substituindo o conhecimento pela crença.

Descartes foi uma das pessoas mais importantes para o desenvolvimento do conhecimento humano, o experimento relatado neste ensaio não diminui os méritos. Para encerrar cito outro brilhante pensador, o brasileiro Millor Fernandes: “penso, logo, eis isto”.


(Milton Valdameri, março de 2017).

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