Em
ensaio anterior, foi questionada a origem do capitalismo na teoria da
Adam Smith, mostrando que o capitalismo deturpa a teoria em vez de
defendê-la. Uma forte evidência de que o capitalismo é uma
deturpação da teoria de Adam Smith, é a diferença que existe
entre a teoria do que é dinheiro para Adam Smith e para o
capitalismo.
A
tese de doutorado em economia, Poder,
Moeda e Riqueza na Europa Medieval,
de Maurício Médici Metri, é uma importante referência para
entender a natureza política do dinheiro e faz uma referência
importante sobre a discordância do capitalismo em relação a Adam
Smith. Na página 14, a tese menciona Alfred Mitchel Innes, que o
início do século XX afirmou que Adam Smith se equivocara sobre o
que vem a ser um ato de compra e venda.
Em
resumo, para Adam Smith uma operação de compra e venda é uma
operação de permuta de mercadorias ou de serviços por mercadorias.
Alfred Innes considera que todas as transações baseiam-se em
relações de débito e crédito. No ensaio anterior, foi mencionado
o ditado popular capitalista “dinheiro
gera dinheiro”,
agora é oportuno lembrar de outro ditado popular capitalista, “a
diferença entre o rico e o pobre está no tamanho da dívida”.
Na
concepção de Adam Smith, o dinheiro é o meio de troca, ou seja,
uma mercadoria que facilita as operações de troca e as transforma
em operações de compra e venda. Para que isso ocorra, é necessário
uma mercadoria que atenda a certos critérios:
1)
Portabilidade: A mercadoria dinheiro deve ser fácil de transportar.
2)
Armazenamento: a mercadoria dinheiro não deve ser perecível ou
correr o risco de se deteriorar.
3)
Dificuldade de obtenção: uma mercadoria de fácil obtenção não
seria trocada por outra, simplesmente seria obtida diretamente.
4)
Ser desejada: quanto mais desejada uma mercadoria, mais fácil é
para encontrar alguém que deseja trocar por outra mercadoria.
A
mercadoria que já foi utilizada como dinheiro e melhor permite
entender a concepção de dinheiro do Adam Smith é o sal, que de
certa forma é usado até hoje no sentido figurado, ou seja, as
pessoas continuam recebendo salário. O sal é fácil de transportar,
não estrada quando armazenado e era difícil de obter, pois era
obtido em minas de sal e não nos mares e oceanos onde é tão
abundante.
Todos
desejavam ter sal, pois deixa a comida saborosa, ou seja, as pessoas
comiam dinheiro literalmente. Quando o sal foi substituído por
moedas de ouro e prata, elas usavam as moedas para comprar sal. Para
a maioria das pessoas o ouro não tinha outra utilidade, senão
trocar por outra mercadoria, mas para os ricos, o ouro servia para
ostentar poder, embelezar suas moradias e a si mesmos. Antes, os
ricos usavam sal para comprar ouro, depois, os pobres usavam ouro
para comprar sal.
O
sal atendia muito bem aos quatro critérios da mercadoria dinheiro,
mas não atendia ao quinto critério: comer dinheiro empobrece a
sociedade, portanto a mercadoria dinheiro não deve ser comestível,
ou seja, a mercadoria dinheiro deve permanecer em circulação.
Tanto
o sal como o ouro ou a prata, eram obtidos em minas, que eram
propriedade dos governos, portanto os governos tinham o controle
sobre o dinheiro desde os tempos mais antigos. Mas o sal apresentava
um grave problema, ele desaparecia em vez de voltar para os cofres do
governo através dos tributos. Desta forma, a riqueza nunca crescia,
ou seja, não podia ser acumulada.
Então
o quinto critério da mercadoria dinheiro, é não ter outra
utilidade, senão servir como meio de troca. Como o ouro e a prata
possuem outras utilidades, a confecção de moedas de ouro e moedas
de prata, com os símbolos do governo, davam ao ouro um valor maior
que o próprio ouro, ou seja, a moeda de ouro tinha a garantia do
governo que era realmente de ouro e qualquer pessoa poderia receber
sem medo. Desta forma, as pessoas que desejassem comprar ouro para
fazer uma joia, usavam moedas de ouro para comprar ouro, pois era
mais barato que utilizar as moedas para fazer a joia.
Aparentemente,
a moeda de ouro muda a relação do dinheiro com mercadoria, que
existia de forma obvia com o uso do sal como dinheiro, pois uma moeda
de ouro de dez gramas vale mais que dez gramas de ouro, mas não é
isso que acontece. Além da quantidade de ouro na moeda, existe a
quantidade de trabalho, que deve ser remunerado. Se um indivíduo
pegar uma quantidade de ouro e fizer um colar, o colar não será
trocado por uma quantidade igual de ouro, mas por uma quantidade
maior que remunere o trabalho de fabricação do colar.
O
uso de moedas e ouro mostram de forma eficiente a teoria do dinheiro
do Adam Smith, que aliás, defendo a prática do livre mercado,
portanto não faria sentido o dinheiro ser outra coisa, senão uma
mercadoria. Mas o contestador de Smith, Alfred Innes, tomou como
referência o uso de outros objetos como moeda, para mostrar que o
dinheiro é uma operação de débito e crédito. Então vamos
analisar esses outros objetos, que foram utilizados como dinheiro na
antiguidade, mas não se enquadram na teoria de Adam Smit, utilizando
conchas no lugar de moedas de ouro.
Como
uma sociedade pode utilizar conchas no lugar de moedas de ouro?
Convencionando que, uma determinada quantidade de conchas equivale a
uma determinada quantidade de mercadoria, seja um quilo de arroz, um
quilo de feijão, ou uma vaca, cada mercadoria equivale a uma
quantidade de conchas. Um indivíduo só aceitaria uma concha em
troca de um quilo de feijão, se ele tivesse a garantia de poder
trocar essa concha novamente por outro quilo de feijão, no mínimo.
Se
no dia seguinte, o indivíduo não conseguisse mais trocar a concha
por um quilo de feijão, ele não nais aceitariam conchas em troca do
feijão que tinha para trocar, o sistema de uso de conchas como
dinheiro sucumbiria. Em resumo, a concha era uma forma de crédito, e
não um meio de troca efetivo. Por que será que o sistema de usar
conchas como dinheiro não prosperou?
Em
verdade, as conchas foram substituídas por cédulas, emitidas pelos
governos. Em 1870, o Império Britânico estabeleceu o padrão ouro,
onde as cédulas representavam uma quantidade de ouro, ou seja, a
quantidade libras que circulavam, equivaliam a uma quantidade de ouro
armazenado. O padrão libra-ouro foi adotado pelos principais países
do mundo, mas não por todos. Entre 1914 e 1944, o padrão libra-ouro
foi abandonado e estabeleceu-se o caos monetário, que encerrou com a
volta do padrão ouro, porém o modelo libra-ouro (britânico) foi
substituído pelo modelo dólar-ouro (americano), ou seja, a libra
deixou de ser a moeda de referência internacional, sendo substituída
pelo dólar.
Em
1971, os EUA aboliram unilateralmente o modelo dólar-ouro e
estabeleceram o modelo de livre flutuação, ou sistema flutuante. O
marxismo denominou essa mudança de neoliberalismo, mas isso é outra
conversa. De certa forma, o sistema de moedas de ouro, meio de troca,
estava sendo substituído pelo sistema de conchas, débito e crédito.
Na
prática, foi estabelecido um sistema híbrido, onde as relações
político-econômicas dos países utilizam o débito e crédito como
dinheiro (conchas) e os cidadãos usam o meio de troca (moeda de
ouro). Não importa o país onde o indivíduo mora, a referência que
ele tem para o seu dinheiro, é a quantidade de mercadorias que ele
pode comprar, os dólares do cidadão americano não dizem respeito a
quantos reais, euros ou libras ele pode comprar, mas sim à
quantidade de mercadorias que ele pode comprar.
O
mercado financeiro e as bolsas de valores usam os dois modelos ao
mesmo tempo. Na bolsa de valores, o investidor compra ações com
base no crédito que uma empresa tem, mas o valor das ações é
realmente conhecido, somente quando a quantidade ações existentes
são comparadas com a quantidade de bens da empresa. O sistema
financeiro, por sua vez, faz a hipoteca de imóveis que servem de
garantia (crédito) para entregar dinheiro ao cliente, mas não
reconhece o imóvel como crédito equivalente na hora de recebê-lo
como quitação do débito, nesses casos o imóvel atua como a concha
que comprou um quilo de feijão num dia, mas no dia seguinte não
serviu para comprar o mesmo quilo de feijão de volta.
Em
resumo, dinheiro é aquilo que Adam Smith disse, esse é o único
dinheiro que o indivíduo pode ter e usar, a outra suposta forma de
dinheiro, é apenas poder político que permite controlar o acesso
dos cidadãos às riquezas. Mas esse controle não foi inventado
pelos EUA, Stalin implantou esse controle pela primeira vez quando
criou a URSS, Cuba e os outros países marxistas seguiram o mesmo
modelo.
Mas
há uma grande diferença entre o modelo dos EUA e o modelo marxista,
o primeiro utiliza referências de mercado para flutuar, enquanto que
o segundo simplesmente arbitra um valor para a moeda. Atualmente,
Cuba tem duas moedas, uma para se relacionar com a própria população
e outra para se relacionar com o mundo.
Resumindo,
não interessa o que está escrito na cédula, o dinheiro que você
tem é a quantidade de mercadoria que você pode comprar.
(Milton
Valdameri, julho de 2016).
Nenhum comentário:
Postar um comentário