Este ensaio foi motivado pelo vídeo do Café Filosófico, onde Leandro Karnal e Clóvis Barros Filho fazem a apresentação do livro deles, Felicidade ou Morte (aqui) . O ensaio não tem o objetivo de divulgar o livro, tampouco tem o objetivo de contestá-lo, inclusive porque o autor do ensaio não leu e não pretende ler o referido livro, mas também não se opõe à leitura ou à sua divulgação.
Conforme afirmado no vídeo, os autores do livro não apresentaram uma definição do que seria a felicidade, no entanto, toda a apresentação foi direcionada no sentido de considerar felicidade aquilo que nos alegra ou satisfaz nossos desejos. Desta forma, a felicidade foi apresentada como um sentimento, onde não existe felicidade, mas sim momentos felizes. A motivação deste ensaio é justamente abordar a felicidade em outro sentido.
No vídeo, Leandro Karnal diz que a felicidade não pode ser permanente, que é um fenômeno histórico, mencionou o budismo como proposta que ensina a não desejar a felicidade. Este ensaio também não pretende apresentar a visão budista, hinduísta ou oriental da felicidade, mas contrapor o sentido de felicidade como sentimento diante do sentido de felicidade como um estado que pode ser permanente.
Não se trata de contestar os autores do livro, nem de contestar o sentido que eles usaram para dissertar sobre felicidade, que é utilizado por muitos outros autores. Trata-se simplesmente de questionar a possibilidade de a felicidade ser um estado necessariamente transitório ou não.
Portanto, este ensaio se propõe a analisar a possibilidade de a felicidade ser um estado permanente que, uma vez atingido, não poderá ser mudado por fatores externos ao indivíduo, embora o indivíduo possa abandoná-lo. Mas também é necessário questionar o quanto os fatores externos atrapalham ou contribuem para que o indivíduo atinja a felicidade ou abandone-a.
O primeiro ponto a ser analisado é: felicidade, é um sentimento? Sendo um sentimento, é necessário analisar alguns sentimentos conhecidos, frio e calor, alegria e tristeza, dor e raiva. Observe-se que dor e raiva não possuem um sentimento contrário, enquanto que frio e calor, alegria e tristeza não representam necessariamente a ausência um do outro, é possível não estar triste sem necessariamente estar alegre.
É possível sentir frio ou calor, tristeza, dor e raiva ao mesmo tempo. No entanto, também é possível sentir frio ou calor, dor e alegria ao mesmo temo. Uma pessoa ferida e com frio, certamente sentirá alegria ao ser socorrida, mas a presença da alegria, além de substituir a tristeza, impede a presença da raiva. Mas é possível sentir raiva sem sentir tristeza e sentir tristeza sem sentir raiva, então a alegria tem uma relação sine qua non com tristeza e raiva, ou seja, a ausência de alegria é condição necessária para a existência da tristeza e/ou da raiva.
Os seis sentimentos mencionados, podem ser tanto expressados pelos indivíduos, como escondidos, mas e a felicidade pode ser expressada? No entanto, há outro fator muito importante, os seis sentimentos mencionados podem ser fingidos, mas é possível fingir felicidade? Esse é o ponto que se mostra mais importante para compreender o que é ou não é felicidade, descobrir em quais situações pode ser identificada a felicidade ou a infelicidade.
Uma situação onde é supostamente possível identificar felicidade, é com crianças, que brincam felizes, param de brincar e continuam felizes até irem dormir, ou seja, interromper a diversão, interromper o momento de alegria não interrompe a felicidade. Mas também existe uma situação, frequentemente mencionada por Leandro Karnal em suas entrevistas e palestras: uma criança com vários brinquedos tira o único brinque de outra criança, mostrando a diferença entre inveja e cobiça.
Então é possível estabelecer duas circunstâncias com crianças, onde, em uma circunstância a criança mostra-se feliz e outra onde a criança mostra-se invejosa. Isso elimina a crença de que crianças são felizes apenas por serem crianças, mas também elimina a crença de que a satisfação dos desejos faz as pessoas se sentirem felizes.
Considerando que, em alguns casos é possível identificar suposta felicidade em uma criança depois que ela parou de brincar, mas em outros casos não é possível identificar felicidade em uma criança mesmo enquanto ela está brincando, então é possível supor que uma criança está num estado permanente de felicidade e a outra não.
Esse suposto estado de felicidade pode ser comparado com a inteligência, ou seja, da mesma forma como existem pessoas mais inteligentes e menos inteligentes, existem pessoas mais felizes e menos felizes, independentemente dos fatores externos, mas evidentemente, felicidade não está diretamente relacionada com inteligência, a presença de uma, não indica presença da outra e vice-versa.
Da mesma forma como não sabemos o que é felicidade, também não sabemos o que é inteligência, mas é possível perceber facilmente que Isaac Newton era mais inteligente que a maioria das outras pessoas, talvez até a mais inteligente que já existiu. Mas como seria um Isaac Newton que não aprendeu a ler e escrever? È possível que a inteligência do Newton analfabeto não tivesse nenhuma diferença da inteligência do Newton matemático, mas as outras pessoas jamais perceberiam a diferença entre a inteligência dele e a dos outros.
Considerando que a felicidade existe nas pessoas, de forma igual ou semelhante à inteligência, então a questão não está em conquistar a felicidade, mas sim aprender a utilizar a felicidade que temos, da mesma forma como necessitamos aprender a utilizar a inteligência que temos.
A inteligência não faz as pessoas serem boa ou ruins, é o uso da inteligência que as torna boas ou ruins, então, partindo do princípio que a felicidade existe de forma semelhante à inteligência, pessoas felizes não são necessariamente boas pessoas. O nazismo contou com pessoas muito inteligentes ao seu lado, mas também contou com muitas pessoas supostamente felizes.
Após a derrota nazista, com Berlim destruída, muitos alemães continuaram simpatizantes ao nazismo, duvidando que as atrocidades relatadas pelos aliados tinham sido cometidas. A solução encontrada pelos aliados, foi levar o público para visitarem os laboratórios nazistas e os campos de concentração (vídeo).
Agora existe uma referência importante para o raciocínio: pessoas sendo felizes com o nazismo. Mas também existe uma referência mais contundente, a felicidade causada pelo nazismo se transformou em constrangimento. Então são dois questionamentos inevitáveis, se o nazismo pode proporcionar felicidade e se a felicidade pode se transformar em constrangimento.
Se, como acredita a maioria da população ocidental e seus principais escritores sobre tema, a felicidade está relacionada com satisfazer desejos, alcançar objetivos, divertir-se e ter momentos de alegria, então os registros históricos mostram que o nazismo pode proporcionar felicidade. Mas, se o mesmo nazismo que proporcionou a felicidade, tornou-se constrangimento, então existe um paradoxo que impede a existência da felicidade, da mesma forma como o paradoxo temporal impede a viagem no tempo.
No paradoxo temporal, a pessoa não pode voltar no tempo e matar seu avô, antes que ele se torne pai, pois isso impediria você de nascer, portanto você não poderia voltar ao passado para matar seu avô. No paradoxo da felicidade, não poderia ter sido feliz com o nazismo, se ao lembrar do período nazista sente-se constrangido, ou seja, lembrar de um período feliz não pode ser algo constrangedor (e vice-versa), portanto aquilo que aconteceu durante o período nazista, por mais agradável e divertido que tenha sido, não pode ser considerado felicidade.
Agora é oportuno rever a questão da criança, que tendo dez brinquedos, sente necessidade de tirar o brinquedo de outra que tem apenas um. Se uma criança com dez brinquedos não se mostra feliz, enquanto a outra se mostra feliz com apenas um brinquedo, então não é o brinquedo que está proporcionando a felicidade, mas a felicidade que está fazendo com que um só brinquedo seja suficiente.
O conceito de inteligência é tão abstrato quanto o conceito de felicidade, mas a inteligência é facilmente identificada, por isso, sabemos como mantê-la em atividade, mas não sabemos como fazer para a felicidade se manter ativa. Sabemos, ou pelo menos há indícios, que pessoas com mais inteligência não são necessariamente mais felizes, mas pessoas felizes fazem um melhor uso de sua inteligência.
Se pessoas felizes fazem um melhor uso da inteligência, então existe uma relação, embora indireta, entre felicidade e inteligência. Não é razoável desconsiderar a possibilidade de que a relação é recíproca, ou seja, que fazer um melhor uso da inteligência proporciona felicidade.
Este ensaio não tem a pretensão de resolver o mistério, na melhor das hipóteses, oferecer uma pequena colaboração àqueles que desejam refletir sobre o tema. Minha posição pessoal? Eu fico com a pureza das respostas das crianças.
(Milton Valdameri, agosto de 2016)
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