A
frase mais famosa de Shakespeare é, sem dúvida, “ser ou não ser,
eis a questão”. Mas a questão neste ensaio é: o que significa
ser? Durante dezenas de milhares de anos, o ser humano foi pura e
simplesmente humano, que aqui será denominado de ser
natural. Mas num
determinado momento, que não pode ser identificado, a humanidade
começou a inventar seres sobrenaturais. Não estou falando de
deuses, fadas ou duendes, estou falando de pessoas que são algo além
do humano, além do natural, que possuem uma existência mística. Na
parte final do ensaio, mostrarei que não sou o primeiro a abordar
essa questão, Jesus fez isso há dois mil anos.
Como
são poucas as pessoas com capacidade para suportar que suas crenças
sejam analisadas, aviso que, devido ao contexto ao qual o ensaio está
inserido, que é a cultura ocidental, o cristianismo e a psicologia
estarão no centro da análise. Portanto, este pode ser o momento
apropriado para interromper a leitura. Este ensaio é em verdade, um
resumo de um ensaio que se tornou muito longo para publicar no blog,
o ensaio completo só será publicado caso eu escreva um livro onde
ele possa ser encaixado.
A
invenção do ser mais antiga que tenho referência, é o “ser
rei”, junto com o “ser sacerdote”. Embora atualmente os ser rei
não tenha tanta relevância como no passado, a invenção do “ser
rei” fazia com que as pessoas deixassem de ver aquele indivíduo
que “é rei” como um ser humano, para ver como um ser místico
que está apenas usando um corpo humano. Suponho que daí tenha
surgido em outras pessoas a necessidade de descobrirem nelas mesmas
um ser místico que utiliza o seu próprio corpo humano.
O
cristianismo atual, que não tem nenhuma relação com o cristianismo
praticado pelos apóstolos de Jesus, foi pródigo na invenção de
seres, começou justamente inventando o “ser cristão”, que
também resultou na criação do “ser judeu”. Nesse caso, o “ser
judeu” tinha o significado de ser culpado pela crucificação de
Jesus. Com o passar do tempo, o cristianismo criou o “ser pai”,
“ser mãe”, “ser filho” e o “ser família”. Aqui tem uma
parte muito interessante da invenção do “ser”, pois “ser
família”, implica em um “ser” que pode “não ser cristão”,
então foi necessário inventar o “ser família cristã”.
Evidentemente que o “ser pai” existia antes do cristianismo, mas
não faz sentido analisar o “ser pai” dentro de outras culturas,
seria necessário fazer um ensaio para cada uma delas.
Dentro
desse contexto dos “seres” do cristianismo, proporcionaram um
severo controle social, o “ser filho” obedece ao “ser pai”,
que obedece ao “ser padre”, que obedece ao “ser bispo”, que
obedece ao “ser cardeal”, que obedece ao “ser papa”, desta
forma instalou-se um sistema de submissão, através do qual a
instituição Igreja Romana teve o controle da civilização
ocidental por séculos, não é a toa que até hoje é a maior
instituição do mundo. Mas atualmente, a influência da Igreja
Romana, além de ter sido diluída por outras igrejas, foi
substituída principalmente pela psicologia.
O
modelo de ensino estabelecido pela religião, que deixava o ser
natural em segundo plano, começou a ser substituído pela
psicologia, mais intensamente na década de 1970. Atualmente o modelo
de ensino ignora completamente o ser natural e não existe mais
relação entre professor e aluno, mas entre o “ser professor” e
o “perfil psicológico” do aluno. A psicologia, que surgiu
justamente com a invenção de arquétipos, por Carl Jung, com o
passar do tempo foi inventando o “ser criança”, “ser
adolescente”, “ser jovem”, “ser mulher” e assim por diante.
Quanto
mais subdesenvolvido um país, maior é a necessidade da população
em “ser alguma coisa”. No Brasil, políticos não praticam a
representação da população, dedicam-se a “ser deputado”, “ser
senador”, “ser ministro”, “ser presidente” e assim por
diante, mas isso não acontece apenas com político, não é
necessário muito esforço para encontrar advogados que não estão
nem um pouco interessados em advogar ou praticar o direito,
dedicam-se a “ser advogado”, “ser juiz”, “ser promotor”.
Embora na profissão de advogado essa situação seja mais explícita,
ocorre em todas as profissões.
E
como Jesus entra nessa pendenga? Em
João, 3:1-12, Jesus diz a Nicodemos: “Ninguém
pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo”.
Nicodemos questiona
Jesus, que explica: “Ninguém
pode entrar no Reino de Deus se não nascer da água e do Espírito”
e diz também “O
vento sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer de onde
vem nem para onde vai. Assim acontece com todos os nascidos do
Espírito.”,
disse também,
“Eu falei de
coisas terrenas e vocês não creram; como crerão se falar de coisas
celestiais?”.
Devem
existir
diversas interpretações para essa passagem do evangelho, este
ensaio não deseja interpretar, mas sim constatar. O significado da
palavra espírito,
nessa passagem, é pura e simplesmente “essência”,
não cabe outro significado ou interpretação. O significado de
“nascer da água”
também é de fácil entendimento, pois a água simboliza a limpeza,
a purificação. Portanto o que pode ser constatado nessa passagem da
bíblia, é que “nascer
novamente, da água e do espírito”,
significa retornar ao “ser
natural”, que
nesse casso é o ser criado por deus e não o ser criado pelos homens
e suas crenças terrenas, cujas impurezas devem ser devidamente
saneadas.
Outra
passagem que reforça o argumento do parágrafo anterior, é Lucas
10:30-37. Um indivíduo que tinha sido agredido por assaltantes foi
encontrado por um sacerdote, que se desviou, depois foi encontrado
por um levita, que também se desviou, mas quando foi encontrado por
samaritano, esse ajudou o indivíduo necessitado. O sacerdote se
preocupou em “ser sacerdote”, o levita se preocupou em “ser
levita”, mas o samaritano ser preocupou apenas em “ser
humano” e agiu de
acordo com a compaixão que, de acordo com o cristianismo, faz parte
do ser criado por deus.
Este
ensaio só pode apresentar como conclusão, que todo e qualquer
esforço para ser algo ou alguém que esteja além do ser natural, é
iludir a si mesmo e aos outros, é patético e perverso, cria
exércitos de recalcados.
O ser humano nasce com capacidades e deficiências, não há
outra coisa a fazer senão buscar corrigir as deficiências e
aperfeiçoar as capacidades, todas as outras maneiras de ser, não
passam de fantasias.
(Milton Valdameri, março de
2017).
Caro Milton, como sempre seus textos são instigantes e nos remetem a olhar para fora da caixa. Obrigado pelo envio.
ResponderExcluirAlcides