segunda-feira, 20 de março de 2017

A Invenção do Ser

A frase mais famosa de Shakespeare é, sem dúvida, “ser ou não ser, eis a questão”. Mas a questão neste ensaio é: o que significa ser? Durante dezenas de milhares de anos, o ser humano foi pura e simplesmente humano, que aqui será denominado de ser natural. Mas num determinado momento, que não pode ser identificado, a humanidade começou a inventar seres sobrenaturais. Não estou falando de deuses, fadas ou duendes, estou falando de pessoas que são algo além do humano, além do natural, que possuem uma existência mística. Na parte final do ensaio, mostrarei que não sou o primeiro a abordar essa questão, Jesus fez isso há dois mil anos.

Como são poucas as pessoas com capacidade para suportar que suas crenças sejam analisadas, aviso que, devido ao contexto ao qual o ensaio está inserido, que é a cultura ocidental, o cristianismo e a psicologia estarão no centro da análise. Portanto, este pode ser o momento apropriado para interromper a leitura. Este ensaio é em verdade, um resumo de um ensaio que se tornou muito longo para publicar no blog, o ensaio completo só será publicado caso eu escreva um livro onde ele possa ser encaixado.

A invenção do ser mais antiga que tenho referência, é o “ser rei”, junto com o “ser sacerdote”. Embora atualmente os ser rei não tenha tanta relevância como no passado, a invenção do “ser rei” fazia com que as pessoas deixassem de ver aquele indivíduo que “é rei” como um ser humano, para ver como um ser místico que está apenas usando um corpo humano. Suponho que daí tenha surgido em outras pessoas a necessidade de descobrirem nelas mesmas um ser místico que utiliza o seu próprio corpo humano.

O cristianismo atual, que não tem nenhuma relação com o cristianismo praticado pelos apóstolos de Jesus, foi pródigo na invenção de seres, começou justamente inventando o “ser cristão”, que também resultou na criação do “ser judeu”. Nesse caso, o “ser judeu” tinha o significado de ser culpado pela crucificação de Jesus. Com o passar do tempo, o cristianismo criou o “ser pai”, “ser mãe”, “ser filho” e o “ser família”. Aqui tem uma parte muito interessante da invenção do “ser”, pois “ser família”, implica em um “ser” que pode “não ser cristão”, então foi necessário inventar o “ser família cristã”. Evidentemente que o “ser pai” existia antes do cristianismo, mas não faz sentido analisar o “ser pai” dentro de outras culturas, seria necessário fazer um ensaio para cada uma delas.

Dentro desse contexto dos “seres” do cristianismo, proporcionaram um severo controle social, o “ser filho” obedece ao “ser pai”, que obedece ao “ser padre”, que obedece ao “ser bispo”, que obedece ao “ser cardeal”, que obedece ao “ser papa”, desta forma instalou-se um sistema de submissão, através do qual a instituição Igreja Romana teve o controle da civilização ocidental por séculos, não é a toa que até hoje é a maior instituição do mundo. Mas atualmente, a influência da Igreja Romana, além de ter sido diluída por outras igrejas, foi substituída principalmente pela psicologia.

O modelo de ensino estabelecido pela religião, que deixava o ser natural em segundo plano, começou a ser substituído pela psicologia, mais intensamente na década de 1970. Atualmente o modelo de ensino ignora completamente o ser natural e não existe mais relação entre professor e aluno, mas entre o “ser professor” e o “perfil psicológico” do aluno. A psicologia, que surgiu justamente com a invenção de arquétipos, por Carl Jung, com o passar do tempo foi inventando o “ser criança”, “ser adolescente”, “ser jovem”, “ser mulher” e assim por diante.

Quanto mais subdesenvolvido um país, maior é a necessidade da população em “ser alguma coisa”. No Brasil, políticos não praticam a representação da população, dedicam-se a “ser deputado”, “ser senador”, “ser ministro”, “ser presidente” e assim por diante, mas isso não acontece apenas com político, não é necessário muito esforço para encontrar advogados que não estão nem um pouco interessados em advogar ou praticar o direito, dedicam-se a “ser advogado”, “ser juiz”, “ser promotor”. Embora na profissão de advogado essa situação seja mais explícita, ocorre em todas as profissões.

E como Jesus entra nessa pendenga? Em João, 3:1-12, Jesus diz a Nicodemos: “Ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo”. Nicodemos questiona Jesus, que explica: “Ninguém pode entrar no Reino de Deus se não nascer da água e do Espírito” e diz também “O vento sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todos os nascidos do Espírito.”, disse também,Eu falei de coisas terrenas e vocês não creram; como crerão se falar de coisas celestiais?”.

Devem existir diversas interpretações para essa passagem do evangelho, este ensaio não deseja interpretar, mas sim constatar. O significado da palavra espírito, nessa passagem, é pura e simplesmente “essência”, não cabe outro significado ou interpretação. O significado de “nascer da água” também é de fácil entendimento, pois a água simboliza a limpeza, a purificação. Portanto o que pode ser constatado nessa passagem da bíblia, é que “nascer novamente, da água e do espírito”, significa retornar ao “ser natural”, que nesse casso é o ser criado por deus e não o ser criado pelos homens e suas crenças terrenas, cujas impurezas devem ser devidamente saneadas.

Outra passagem que reforça o argumento do parágrafo anterior, é Lucas 10:30-37. Um indivíduo que tinha sido agredido por assaltantes foi encontrado por um sacerdote, que se desviou, depois foi encontrado por um levita, que também se desviou, mas quando foi encontrado por samaritano, esse ajudou o indivíduo necessitado. O sacerdote se preocupou em “ser sacerdote”, o levita se preocupou em “ser levita”, mas o samaritano ser preocupou apenas em “ser humano” e agiu de acordo com a compaixão que, de acordo com o cristianismo, faz parte do ser criado por deus.

Este ensaio só pode apresentar como conclusão, que todo e qualquer esforço para ser algo ou alguém que esteja além do ser natural, é iludir a si mesmo e aos outros, é patético e perverso, cria exércitos de recalcados. O ser humano nasce com capacidades e deficiências, não outra coisa a fazer senão buscar corrigir as deficiências e aperfeiçoar as capacidades, todas as outras maneiras de ser, não passam de fantasias.


(Milton Valdameri, março de 2017).


Um comentário:

  1. Caro Milton, como sempre seus textos são instigantes e nos remetem a olhar para fora da caixa. Obrigado pelo envio.
    Alcides

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