domingo, 30 de abril de 2017

George Orwell, 1984

Li a obra 1984, de George Orwell, justamente no ano de 1984, mas foi apenas uma coincidência, o ano de 1984 não fez a obra com título homônimo repercutir e eu não conheço mais ninguém que tenha lido esse livro naquele ano, ou já tinham lido em anos anteriores ou leram anos mais tarde. Meu interesse em ler 1984 surgiu após ler A Revolução dos Bichos, também de George Orwell e que era muito mais famosa. Li as duas obras em um intervalo de um mês ou dois.

Foram produzidos dois filmes baseados nessa obra, um lançado em 1956 e outro lançado no final de 1984. Em minha humilde arrogância, considero um pior que o outro. Uma versão romântica denominada Equals, produzida em 2014, gerou polêmica entre os fãs, mas é irrelevante, uma vez que os filmes que tentaram ser fiéis à obra foram muito ruins. A obra 1984 tem aproximadamente cem páginas, mas para fazer um bom filme, é necessário ser um longa-metragem, por isso, para quem leu o livro com a devida atenção, não conseguirá gostar de nenhum dos dois filmes produzidos.

A obra 1984 é considera uma ficção de caráter profético, eu também entendi dessa maneira quando li. É comum as pessoas compararem 1984 com Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, que por sinal resultou num ótimo filme, mas a comparação é um equívoco, 1984 não é profético nem é ficção. Atualmente é comum encontrar pessoas dizendo que a profecia de 1984 está se realizando, principalmente na internet, isso ocorre porque as pessoas relacionam fatos atuais com certas circunstâncias do livro. Foi dessa forma que percebi que a obra não é profética nem é ficção, fazendo a relação de fatos atuais com circunstâncias do livro, mas relacionando também com fatos da época em que o livro foi produzido.

O livro foi produzido em 1948 e o título nada mais é que 48 ao contrário, uma indicação significativa de que Orwell escreveu sobre o presente e não sobre o futuro, mas não se sentia seguro para escrever abertamente. Orwell criou um cenário fictício e um enredo contundente, não para escrever uma obra de ficção, mas para publicar uma mensagem codificada. Os filmes, o livro e a resenha estão disponível na internet, então não vou perder muito tempo em descrever a obra, vou abordar os três pontos que considero principais, a guerra, a polícia do pensamento e o novo idioma.

Na obra 1984, o mundo se divide em três blocos, Oceânia, Lestácia e Eurásia, a história se desenvolve na Eurásia, que está constantemente em guerra, as vezes contra a Lestácia, tendo a Oceânia como aliada, as vezes contra a Oceânia, tendo a Lestácia como aliada, mas os noticiários sempre apresentam o inimigo como sendo o inimigo de sempre e o aliado como sendo o aliado de sempre. Orwell jamais imaginou que o mundo se dividiria em dois blocos, OTAN, criada em 1949, e Pacto de Varsóvia, criado em 1955. Os países que não faziam parte desses blocos eram denominados de Terceiro Mundo, mas poderiam ser denominados de Bloco dos Insignificantes, com exceção de Suíça e outros três ou quatro países, que eram denominados de “neutros”.

Para entender os três blocos de Orwell, é necessário saber que ele era simpatizante do anarquismo e lutou na Espanha, contra o general Franco. Os comunistas da Espanha eram aliados dos liberais e de outros opositores de Franco, ao contrário do que acontecia na Alemanha, onde a URSS não aceitava que o Partido Comunista se aliasse aos liberais no combate ao nazismo. Orwell foi ferido e voltou para a Inglaterra prosseguindo com sua carreira de escritor. Na Espanha, Orwell viveu a seguinte situação: a URSS enviou homens para lutar contra Franco, mas não enviou armas, ou melhor, não enviou armas suficientes, por outro lado, a Alemanha enviou aviões para apoiar Franco e os opositores foram derrotados com certa facilidade.

Orwell viveu a situação onde URSS era aliada do Nazismo, embora de forma velada, fez de conta que apoiou a luta contra Franco, depois virou inimiga da Alemanha e aliada da Inglaterra. A Espanha, por sua vez, procurou se manter neutra na Segunda Guerra, mas era politicamente, e comercialmente aliada da Alemanha, até a Alemanha ficar em desvantagem, então se tornou politicamente aliada da Inglaterra, o que a tornava aliada da URSS. Em resumo, Orwell apenas colocou no livro aquilo que viveu, ou seja, aliados que nunca foram aliados e inimigos que nunca foram inimigos, diante de uma população que não faz a menor ideia contra quem está lutando e nem mesmo sabe se realmente existe uma guerra.

No livro, a polícia do pensamento aparece prendendo um casal que foi denunciado por seus filhos, que ainda eram crianças, mas na maioria das vezes as pessoas eram presas por serem denunciadas pelos vizinhos ou colegas de trabalho, ou seja, por qualquer pessoa. Basta saber como as bruxas eram denunciadas na idade média para perceber que não há nenhuma novidade no livro de Orwell.

Quanto à denúncia feita por crianças filhas dos denunciados, é uma alusão ao que acontece quando crianças falam alguma coisa que vizinhos ou amigos acabam usando para comprometer os pais diante da opinião pública. Uma pessoa que, por motivo insignificante, for considerada “contrária” ao pensamento de sua igreja, de seu clube social, ou até mesmo time de futebol, corre o risco de ser isolada. E o qual é o significado de uma prisão, senão o isolamento do indivíduo da sociedade? Quando Orwell escreveu 1984, ele próprio vivia em isolamento social, por mais voluntário que fosse esse isolamento, é questionável se era espontâneo ou ele se sentia rejeitado pela sociedade.

O novo idioma (novilíngua) consiste em reduzir cada vez mais a quantidade de palavras do dicionário, não há dúvida sobre Orwell fazer referência a intenção de restringir a capacidade de comunicação dos indivíduos, mas isso não significa que o dicionário estava sendo diminuído. Na realidade, o dicionário estava aumentando e continua aumentando até hoje, mas a capacidade de comunicação diminuía e continua diminuindo até hoje. Orwell tentou atrair a atenção das pessoas para o fato de que a capacidade de comunicação estava diminuindo, mas as pessoas direcionaram a atenção para o dicionário e não para a capacidade de comunicação dos indivíduos.

Observe que, no livro, Orwell menciona um projeto de eliminação dos antônimos, cita como exemplo a palavra ódio, que é desnecessária, podendo simplesmente ser substituída pela expressão de contrariedade do amor, “in-amor”. Isso retiraria a palavra ódio do dicionário, e todos os antônimos, mas não diminuiria a capacidade de comunicação dos indivíduos, na prática seria como substituir uma palavra, ela poderia não existir no dicionário, mas seu significado continuaria existindo no vocabulário das pessoas.

Uma história sobre Confúcio diz que ele considerava como prioridade para os governos, fazer as pessoas conhecerem o verdadeiro significado das palavras. Evidentemente Confúcio não pretendia criar uma ditadura, muito pelo contrário. A restrição da capacidade de comunicação das pessoas acontecia, e acontece até hoje, justamente deturpando o significado das palavras através da ampliação do significado. Desta forma, o interlocutor pode entender uma frase de forma totalmente adversa ao significado pretendido pelo locutor. Nada mais eficiente para dividir a sociedade e impedir que ela consiga se organizar, fazer com que um não entenda o outro, embora supostamente fazem o mesmo idioma.

O melhor exemplo disso é com a palavra ciência, a maioria das pessoas saem das faculdades, dos mestrados e doutorados, sem saber o significado de ciência. A homeopatia foi apresentada ao público, por Hanneman, como uma nova ciência, o espiritismo foi apresentado por Allan Kardec, como uma nova ciência, psicanálise e psicologia são apresentadas como ciência, universidades dividem os cursos em ciências exatas e ciências humanas. Mas não existe nova ciência e velha ciência, não existe ciência materialista e espiritualista, não existem ciências humanas e ciências exatas, existe só e somente só, ciência e não ciência.

Existem muitos pontos interessantes no livro 1984, mas não serão abordados aqui, porque a postagem ficaria muito longa. Espero ter conseguido mostrar que a polícia do pensamento existe há séculos, da mesma forma como a manipulação de pessoas através da manipulação da linguagem também existe há séculos, ou seja, 1984 não é um livro profético e não é fictício, o cenário é fictício, mas não o conteúdo, não a mensagem que deseja transmitir.

(Milton Valdameri, abril de 2017).


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