Li
a obra 1984,
de George Orwell, justamente no ano de 1984, mas foi apenas uma
coincidência, o ano de 1984 não fez a obra com título homônimo
repercutir e eu não conheço mais ninguém que tenha lido esse livro
naquele ano, ou já tinham lido em anos anteriores ou leram anos mais
tarde. Meu interesse em ler 1984
surgiu após ler A Revolução dos Bichos, também de George Orwell e
que era muito mais famosa. Li as duas obras em um intervalo de um mês
ou dois.
Foram
produzidos dois filmes baseados nessa obra, um lançado em 1956 e
outro lançado no final de 1984. Em minha humilde arrogância,
considero um pior que o outro. Uma versão romântica denominada
Equals,
produzida em 2014, gerou polêmica entre os fãs, mas é irrelevante,
uma vez que os filmes que tentaram ser fiéis à obra foram muito
ruins. A obra 1984
tem aproximadamente cem páginas, mas para fazer um bom filme, é
necessário ser um longa-metragem, por isso, para quem leu o livro
com a devida atenção, não conseguirá gostar de nenhum dos dois
filmes produzidos.
A
obra 1984
é considera uma ficção de caráter profético, eu também entendi
dessa maneira quando li. É comum as pessoas compararem 1984
com Admirável
Mundo Novo,
de Aldous Huxley, que por sinal resultou num ótimo filme, mas a
comparação é um equívoco, 1984
não é profético nem é ficção. Atualmente é comum encontrar
pessoas dizendo que a profecia de 1984
está se realizando, principalmente na internet, isso ocorre porque
as pessoas relacionam fatos atuais com certas circunstâncias do
livro. Foi dessa forma que percebi que a obra não é profética nem
é ficção, fazendo a relação de fatos atuais com circunstâncias
do livro, mas relacionando também com fatos da época em que o livro
foi produzido.
O
livro foi produzido em 1948 e o título nada mais é que 48 ao
contrário, uma indicação significativa de que Orwell escreveu
sobre o presente e não sobre o futuro, mas não se sentia seguro
para escrever abertamente. Orwell criou um cenário fictício e um
enredo contundente, não para escrever uma obra de ficção, mas para
publicar uma mensagem codificada. Os filmes, o livro e a resenha
estão disponível na internet, então não vou perder muito tempo em
descrever a obra, vou abordar os três pontos que considero
principais, a guerra, a polícia do pensamento e o novo idioma.
Na
obra 1984, o mundo se divide em três blocos, Oceânia,
Lestácia e Eurásia, a
história se desenvolve na Eurásia, que está constantemente em
guerra, as vezes contra a Lestácia, tendo a Oceânia como aliada, as
vezes contra a Oceânia, tendo a Lestácia como aliada, mas os
noticiários sempre apresentam o inimigo como sendo o inimigo de
sempre e o aliado como sendo o aliado de sempre. Orwell jamais
imaginou que o mundo se dividiria em dois blocos, OTAN, criada em
1949, e Pacto de Varsóvia, criado em 1955. Os países que não
faziam parte desses blocos eram denominados de Terceiro Mundo, mas
poderiam ser denominados de Bloco dos Insignificantes, com exceção
de Suíça e outros três ou quatro países, que eram denominados de
“neutros”.
Para
entender os três blocos de Orwell, é necessário saber que ele era
simpatizante do anarquismo e lutou na Espanha, contra o general
Franco. Os comunistas da Espanha eram aliados dos liberais e de
outros opositores de Franco, ao contrário do que acontecia na
Alemanha, onde a URSS não aceitava que o Partido Comunista se
aliasse aos liberais no combate ao nazismo. Orwell foi ferido e
voltou para a Inglaterra prosseguindo com sua carreira de escritor.
Na Espanha, Orwell viveu a seguinte situação: a URSS enviou homens
para lutar contra Franco, mas não enviou armas, ou melhor, não
enviou armas suficientes, por outro lado, a Alemanha enviou aviões
para apoiar Franco e os opositores foram derrotados com certa
facilidade.
Orwell
viveu a situação onde URSS era aliada do Nazismo, embora de forma
velada, fez de conta que apoiou a luta contra Franco, depois virou
inimiga da Alemanha e aliada da Inglaterra. A Espanha, por sua vez,
procurou se manter neutra na Segunda Guerra, mas era politicamente, e
comercialmente aliada da Alemanha, até a Alemanha ficar em
desvantagem, então se tornou politicamente aliada da Inglaterra, o
que a tornava aliada da URSS. Em resumo, Orwell apenas colocou no
livro aquilo que viveu, ou seja, aliados que nunca foram aliados e
inimigos que nunca foram inimigos, diante de uma população que não
faz a menor ideia contra quem está lutando e nem mesmo sabe se
realmente existe uma guerra.
No
livro, a polícia do pensamento aparece prendendo um casal que foi
denunciado por seus filhos, que ainda eram crianças, mas na maioria
das vezes as pessoas eram presas por serem denunciadas pelos vizinhos
ou colegas de trabalho, ou seja, por qualquer pessoa. Basta saber
como as bruxas eram denunciadas na idade média para perceber que não
há nenhuma novidade no livro de Orwell.
Quanto
à denúncia feita por crianças filhas dos denunciados, é uma
alusão ao que acontece quando crianças falam alguma coisa que
vizinhos ou amigos acabam usando para comprometer os pais diante da
opinião pública. Uma pessoa que, por motivo insignificante, for
considerada “contrária” ao pensamento de sua igreja, de seu
clube social, ou até mesmo time de futebol, corre o risco de ser
isolada. E o qual é o significado de uma prisão, senão o
isolamento do indivíduo da sociedade? Quando Orwell escreveu 1984,
ele próprio vivia em isolamento social, por mais voluntário que
fosse esse isolamento, é questionável se era espontâneo ou ele se
sentia rejeitado pela sociedade.
O novo
idioma (novilíngua) consiste em reduzir cada vez mais a quantidade
de palavras do dicionário, não há dúvida sobre Orwell fazer
referência a intenção de restringir a capacidade de comunicação
dos indivíduos, mas isso não significa que o dicionário estava
sendo diminuído. Na realidade, o dicionário estava aumentando e
continua aumentando até hoje, mas a capacidade de comunicação
diminuía e continua diminuindo até hoje. Orwell tentou atrair a
atenção das pessoas para o fato de que a capacidade de comunicação
estava diminuindo, mas as pessoas direcionaram a atenção para o
dicionário e não para a capacidade de comunicação dos indivíduos.
Observe
que, no livro, Orwell menciona um projeto de eliminação dos
antônimos, cita como exemplo a palavra ódio, que é desnecessária,
podendo simplesmente ser substituída pela expressão de
contrariedade do amor, “in-amor”. Isso retiraria a palavra ódio
do dicionário, e todos os antônimos, mas não diminuiria a
capacidade de comunicação dos indivíduos, na prática seria como
substituir uma palavra, ela poderia não existir no dicionário, mas
seu significado continuaria existindo no vocabulário das pessoas.
Uma
história sobre Confúcio diz que ele considerava como prioridade
para os governos, fazer as pessoas conhecerem o verdadeiro
significado das palavras. Evidentemente Confúcio não pretendia
criar uma ditadura, muito pelo contrário. A restrição da
capacidade de comunicação das pessoas acontecia, e acontece até
hoje, justamente deturpando o significado das palavras através da
ampliação do significado. Desta forma, o interlocutor pode entender
uma frase de forma totalmente adversa ao significado pretendido pelo
locutor. Nada mais eficiente para dividir a sociedade e impedir que
ela consiga se organizar, fazer com que um não entenda o outro,
embora supostamente fazem o mesmo idioma.
O
melhor exemplo disso é com a palavra ciência, a maioria das pessoas
saem das faculdades, dos mestrados e doutorados, sem saber o
significado de ciência. A homeopatia foi apresentada ao público,
por Hanneman, como uma nova ciência, o espiritismo foi apresentado
por Allan Kardec, como uma nova ciência, psicanálise e psicologia
são apresentadas como ciência, universidades dividem os cursos em
ciências exatas e ciências humanas. Mas não existe nova ciência e
velha ciência, não existe ciência materialista e espiritualista,
não existem ciências humanas e ciências exatas, existe só e
somente só, ciência e não ciência.
Existem
muitos pontos interessantes no livro 1984, mas não serão abordados
aqui, porque a postagem ficaria muito longa. Espero ter conseguido
mostrar que a polícia do pensamento existe há séculos, da mesma
forma como a manipulação de pessoas através da manipulação da
linguagem também existe há séculos, ou seja, 1984 não é
um livro profético e não é fictício, o cenário é fictício, mas
não o conteúdo, não a mensagem que deseja transmitir.
(Milton Valdameri, abril de
2017).
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